quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Èsù, fiscal do àse: A visita de Òrúnmìlà à cidade de Òwò


Ilé Ifè era o centro do mundo yorubá e o local que congregava grande parte dos personagens que viriam a ser conhecidos como Òrìsà e Ancestrais. Dentre eles, um que se destacava pela sua imensa sabedoria e poder orientador era conhecido por todos como Òrúnmìlà.

Em certa época, resolveu realizar uma jornada até a cidade de Òwò*, para rever o povo e observar como tudo estava se desenvolvendo. Antes, como medida de segurança, fez o jogo dos 16 ikin*, conhecido como Ifá. "É vedado ao Olúwo saber o que acontecerá", respondeu o jogo. O Olúwo efetuou outras jogadas, mas a resposta era sempre a mesma, o que fez com que Òrúnmìlà ficasse em dúvida de fazer a viagem; porém, o seu desejo foi maior e, assim, colocou seus elementos de jogo na sacola e partiu.


A distância para Òwò era longa e iria durar cinco dias. No primeiro dia de sua jornada, encontrou seu amigo Èsù, que estava vindo em direção contrária. Cumprimentaram-se e seguiram viagem, cada um para o seu lado.




No segundo dia de viagem, Òrúnmìlà encontrou novamente Èsù, vindo deÒwò. Òrúnmìlà estranhou o fato e perguntou a Èsù: "Você está vindo de Òwò? Èsù respondeu afirmativamente. Òrúnmìlà meditou sobre o fato, porque achou estranho que duas pessoas indo em direções opostas haviam tornado a se encontrar duas vezes no mesmo caminho.


No terceiro dia, ocorreu o mesmo encontro, o que motivou Òrúnmìlà a se perguntar mais ainda; porém, como estava ávido para chegar aÒwò, não parou para consultar o seu jogo. Afinal, estavam acontecendo coisas muito estranhas.


Ao chegar o quarto dia da viagem de Òrúnmìlà, Èsù se escondeu nos arredores da cidade de Òwò e, quando avistou Òrúnmìlà se aproximando, colocou alguns obì* dentro de um igbá*, deixando tudo ao pé de uma árvore. Adiantou-se e foi ao encontro de Òrúnmìlà, que se surpreendeu ao vê-lo, e disse-lhe: "Èsù, meu amigo, você está mesmo vindo mais uma vez de Òwò?" Èsù lhe respondeu: "É aceitável os amigos duvidarem um do outro? O que tiver que ser, será." Mas Òrúnmìlà não ficou satisfeito e continuou preocupado. Contudo, como estava próximo da cidade, mais uma vez não julgou necessário consultar seu jogo.

Obis


Seguindo mais adiante, encontrou os frutos do obì deixados por Èsù e, como estava cansado de sua longa jornada, apanhou-os e começou a comê-los. Neste momento, surgiu um fazendeiro de Òwòempunhando seu facão na mão de forma ameaçadora: "Você, quem quer que seja, está comendo os obí de minha árvore." Òrúnmìlà respondeu: "Não, eu os encontrei aqui no caminho e não vi árvore alguma." Mas o fazendeiro estava fora de si e falava duramente. Tentou tomar os obì de Òrúnmìlà, que reagiu, surgindo, então, uma luta entre ambos. Na briga, o facão do fazendeiro cortou a palma da mão de Òrúnmìlà e, por isso, eles se afastaram, o fazendeiro se retirou e Òrúnmìlà descansou na estrada e meditou sobre o acontecido: "Isso é coisa maligna. Quando se ouviu falar que algum dia Òrúnmìlà pegou algo que não fosse seu? Em Òwòirão dizer que eu sou um ladrão de obì." Com esses pensamentos a noite chegou e resolveu dormir ali mesmo.



Èsù, que tinha visto tudo, dirigiu-se para a cidade quando todos já estavam adormecidos. Entrou em todas as casas e, com a sua faca, cortou a palma da mão de todas as pessoas que se encontravam dormindo, até a do próprio rei de Òwò. Em seguida, foi para a estrada da cidade e lá se postou, aguardando o amanhecer, não sem antes fazer um pequeno corte em sua própria mão.



Amanheceu, e Òrúnmìlà despertou. Fez suas orações matinais e tomou o caminho da cidade. Era o quinto dia de sua viagem. Na estrada da cidade encontrou Èsù, que o saudou, mas Òrúnmìlà mostrou-se envergonhado, pois, àquela altura, já havia percebido tudo. E disse: "Èsù, o assunto agora está claro e sei que a minha viagem não deveria ter sido realizada. Somos amigos; contudo, você tornou árdua demais a minha viagem." Èsù respondeu: "Òrúnmìlà, nós somos exatamente amigos próximos. Não hesite, entre na cidade e, se houver algum problema, eu o avisarei. Uma coisa eu prometo, você não será injuriado nessa cidade. Pelo contrário, boas coisas chegarão até você." Dito isto, ambos entraram na cidade deÒwò.




Ao chegarem na praça principal, encontraram o fazendeiro que havia reclamado o obì. Quando ele viu Òrúnmìlà, dirigiu-se até o rei e queixou-se, dizendo que o ladão de sua árvore vinha se aproximando. Narrou a luta que havia tido com ele pelos obì e exigiu que ele fosse punido.

Foi então que chegou a vez de Èsù falar: "Um estranho vem para Òwò com uma obrigação e é acusado de um crime. Onde está a prova? E como pode um ladrão de obì ser identificado?" O fazendeiro respondeu: "Nós lutamos na estrada e o meu facão cortou a mão dele. Esta é a prova." E o rei disse a Òrúnmìlà: "Então, abra a sua mão para que todos possam ver a verdade. "

Èsù tomou a iniciativa novamente: "Este estranho que não praticou nenhuma ofensa é o apontado, embora muitas pessoas possam ter roubado os obì. Somente ele é acusado e interrogado. Sendo assim, faça com que todos os cidadãos de Òwò mostrem também a palma de suas mãos." O rei concordou e determinou: "Sim, vamos fazer isso."


E Òrúnmìlà abriu suas mãos e estendeu-as, e o povo acompanhou. E todas as mãos, incluindo as do rei e as do fazendeiro queixoso, tinham um corte recente numa delas. E Èsù disse: "Se um mero corte é a marca da culpa, então todos em Òwò são culpados."


O rei concordou, dizendo: "É verdade, este estranho é inocente. Ele deve ser compensado pela falsa acusação contra ele." E o povo trouxe-lhe oferendas de todas as espécies, incluindo galinhas, cabras, obì, vinho de palma e ìgbín*.


CONCLUSÃO:
Para todo e qualquer emprendimento é costume saber o que determinam os Òrìsà. A prática da consulta está aliada às decisões que devem ser tomadas. Transgredir ou ignorá-las é ficar à mercê dos acontecimentos.


Èsù surge dentro de sua característica principal, a de fiscalizar as coisas do axé, exigindo o cumprimento de suas determinações. A insistência de Òrúnmìlà o fez passar por situações difíceis, mas que foram contornadas por Èsù. É imprevisível a forma como Èsù decide resolver os casos. As diversas narrativas comprovam como as engenhosas artimanhas possuem soluções criativas, o que o torna difícil de ser entendido.


Àqueles que têm a tarefa de utilizar o jogo em prol das pessoas, fica a mensagem: embora cuidem delas, não se omitam diante dos seus problemas pessoais.


Essa narrativa está inserida no Odù Ogbè Ìká, que ainda revela que Èsù fez marca nas palmas das mãos de todas as pessoas, incluindo os embriões de crianças não-nascidas e ainda não-concebidas, para ter certeza de que todas as pessoas que nacessem no futuro teriam linhas nas palmas das mãos.


NOTAS:

1. Òwò: Cidade localizada próxima a Ondo, cujo soberano é denominado de Olówò.


Ikin
2. Ikin: Coquinhos extraídos da palmeira de dendezeiro - igi òpe(Elaeis Guineensis) ou o igi ifá (Elaeis Idolatrica)- e escolhidos de acordo com certas reentrâncias localizadas em sua parte aguda e denominadas olhos. Esses caroços são os èkùró, mas, quando utilizados para o jogo, são chamados ikin, e devem possuir 4 olhos.

3. Olúwo: Grau na hierarquia de sacerdotes de Ifá. Olú: senhor; awo: mistérios que transcendem a compreensão humana. O mesmo que Bàbáláwo.

4. Èsù: Òrìsà com múltiplas funções; entre elas a de colocar as pessoas à prova. É o fiscalizados do comportamento humano e informante de Olódùmarè.

5. Obì: Noz de cola (Cola Acuminata). Fruto usado tanto para a prática religiosa como para a alimentação, por seu alto valor nutritivo. Com apenas alguns gramas reduzidos a pó, permite empreender longas caminhadas e realizar trabalhos pesados sem se sentir fome ou cansaço, tendo sido utilizado com frequência pelos escravos. 


Igbás

6. Igbá: Fruto da cabaceira (Curcubita Lagenaria - Lagenaria Vulgaris). Cortado ao meio, serve de vasilha para alimentos.


7. Ìgbín: Caramujo utilizado como comestível e oferenda por excelência aos Òrìsà da linhagem de Òsàlá, por ser possuidor do sangue branco. Possui características apaziguadoras, extraindo-se de seu interior um líquido denominado omièrò, a água que acalma.

(Extraído do livro "Mitos Yorubás: O Outro Lado do Conhecimento" de José Beniste, com adaptações)

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